Imaginários

Carta ao cartola

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Pelos bares dessa vida
Nas favelas e avenidas
Um moleque louco de cola
Soltando pipa, jogando bola
Foi ali na rua
Nos portões da velha escola
Que eu sentado esperando
Ouvi falar de um tal Cartola
A tela da TV Cultura
Fosca, meio escura
Durante muito tempo
Encerrou minha procura
Fiquei chocado de cara
Quem me conhece não crê
Vendo meu ódio morrendo na frente da TV
Naquela noite ouvi seu som assim ao léu
Uma cadeira, um violão, perto do céu
Falei pros manos desse fato
Eles riram, acharam chato
E não liguei e tal
Desconversei o barato
Manhã de agosto, um café esfria na mesa
Um vulto passa pelos olhos, trinca o gatilho
Vem lá de fora um poema na cabeça
Um lamento que ecoa rua, embalo meu filho
Aí moleque, sai do meio da rua!
Não adianta esperar, vou te contar a notícia
Papai Noel não vai voltar, foi morto lá no beco
E faleceu num bangue-bangue com a polícia

(Tarde demais, um velho olhou para trás
E vendo o morro dormir
Viu que a vida traz motivos pra sorrir
Na mesa de um bar
O dia nasceu
Passou por ali
Desapareceu

Vendo um menino brincando passei a olhar
O triste fim de um velho vendo a morte chegar)

Escuta, sente, esse mundo é tão doente
Tão belo e tão frágil diante da gente
Não quero uma legião de seguidores
Tão pouco homenagens, beijos, flores
Como seu Herman Hesse viu o que que eles vão queimar
Vão matar meu sonho sem me deixar falar
Se eu faço força pra mudar essa porra
E o povo por hora jogado à masmorra
Do mesmo jeito que abraço um amigo
Quero abraçar as putas, punks e assassinos
Bairros, padres, loucos, discriminados
Que se sentem sozinhos nos meios estuprados
Eu quero ver o sorriso do traficante da favela
Dos caras do buteco, da mina que assiste novela
O mesmo mundo que mente e diz que regenera
Vinte manos empilhados numa cela
Esse mundo que matou Guevara e que prendeu Mandela
Que fez e faz escravos por aí
Que oprime as mulheres, que esquece Zumbi
E que de quebra metralha seus horrores
Souzas, Cristos, Angenores
Esse mundo mal-dividido, orgulhoso e convencido
Pelos bares dessa vida, nas favelas e avenidas
Um moleque louco de cola, soltando pipa, jogando bola
Foi ali na rua, nos portões da velha escola
Que eu sentado esperando ouvi falar de um tal Cartola

(Tarde demais, um velho olhou para trás
E vendo o morro dormir
Viu que a vida traz motivos pra sorrir
Na mesa de um bar
O dia nasceu
Passou por ali
Desapareceu)

E ele me disse: É branco o sorriso das crianças
Que vem toda a pureza, toda a ingenuidade, sorrir sem malícia
É negra toda a tristeza dessa vida
Aí a minha perna
Me sentei no meio fio, fiquei à flor da pele
Quebrei aquela casca rancorosa
Perdi o medo de se frustrar comigo mesmo ao longo dessa caminhada
O mundo me pareceu mais inocente e a vida mais viva
As pessoas mais distantes, e mais fechadas
Quantas vezes já me peguei chorando ao ouvir tua música, Cartola?
Mas foi uma tristeza feliz
Nós tava no lado esquerdo do banco, é agosto de dois mil
Eu virei pro Dog e falei
Ô bicho, quando chegar em casa eu vou escrever pro Cartola
Não sei se ficou a cara dele ou se ele ia gostar
Mas foi tudo muito espontâneo, eu não planejei nada
A letra foi vindo e, de coração
De coração pra ti, meu poeta!

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