Vitorino

Rigoroso do pescador da marginal

Vitorino
O melhor da minha vida
é estar aqui na muralha
com uma cana estendida
para o negrume do rio
as vigias de um navio
e as ondas de fina talha

Quando chega sexta-feira
despeço-me da mulher
beijo a criança na esteira
ponho um capuz de oleado
e venho para este lado
no barquinho da carreira

Vejo as luzes de Belém
refractadas no alcatrão
milagres que a noite tem
namorados que se beijam
altas árvores que bocejam
e o búzio que as casas são

Oh minha colcha de estrelas
neste mar côr de basalto
minhas loiras caravelas
navios de especiarias
vogando em ondas macias
num céu tão puro e tão alto

Saltam infantes barbudos
das naus que vêm de Almada
grumetes, frades miudos
com gengivas de escorbuto
donzelas de triste luto
dançam na luz irisada.

Salta El-Rei com seus alões
e as aias da princesa
bobo, jograis e anões
escrivães e cardeais
saltam santas de vitrais
e o cronista à sua mesa

D. João chegou de Dio
D. Pedro de Timor vem
e eu na muralha do rio
a ver os dois enforcados
que os corvos comem em estrados
junto à Torre de Belém

Convosco esqueço o emprego
quando chega sexta-feira
fico surdo fico cego
não ligo è renda da casa
parado a ouvir uma asa
que me voa à cabeceira

Meu rio tão negro e tão fundo
bacia do Mar da Palha
quero lá saber do mundo
quero lá saber do peixe
quem em ama que me deixe
ficar aqui na muralha.

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